sábado, 17 de dezembro de 2016

Rubervam Du Nascimento & Paulo Machado



Antonia Flor, 80

[Rubervam Du Nascimento]

Antonia Flor, 80

na mira de fazendeiros
com seus fuzis de silêncio

montou seu cavalo de sonhos
pra enfrentar a noite

nunca mais voltou

a última vez que foi vista
repartia lotes de nuvens

com os perseguidos do céu


[Marco Lusbel desce ao inferno. Rio de Janeiro: Blocos, 1997]


Canção de Amor e Morte
[Paulo Machado]

Antônia Flor - flor de gameleira -
toda manhã lavrava a terra
com a sabença de quem conhecia
o sabor agridoce dos araçás.

Antônia Flor - flor de gameleira -
na cinzentura da tarde, guardava
no aprisco cabritos e borregos
da fúria profana dos carcarás.

Antônia Flor - flor de gameleira -
aos oitent'anos tinha os olhos acesos
a alumiar, como os olhos de maracajás.

Antônia Flor - flor de gameleira -
fez do amor à terra sua peleja,
sua crença, sua razão de bem-viver.
Antônia Flor - flor de gameleira -
teve o corpo crivado de balas -
à sombra de uma velha ingazeira.

Carpideiras passaram excelências
e tiranas, com a notícia da morte
a correr nos estirões das veredas.


[Baião de todos, antologia, Teresina: Fundapi, 2016. p. 204] 

sábado, 12 de novembro de 2016

Olavo Bilac & Adélia Prado


Via Láctea (XIII)
[Olavo Bilac]

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto

A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora! “Tresloucado amigo!

Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”


[Antologia Poética. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. p. 28]



Subjeto
[Adélia Prado]

O cheiro da flor de abóbora, a massa de seu pólen,

para mim, como óvulo de coelhas,
 Vinde, zangões, machos tolos,
picar a fina parede que mal segura a vida,
tanto ela quer viver.
Ainda que não vou houvesse
eu fecundaria essas flores com meu nariz proletário.
 Ora, direis, um lírio ignóbil.
Pois vos digo que a reproduzo em ouro
sobre meu vestido de núpcias, meu vestido de noite.
Dentro do quarto escuro
ou na rua sem lâmpadas, de cidade ou memória,
um sol.
Como pequenas luzes esplêndidas.

[O coração disparado. In: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 111] 

sábado, 1 de outubro de 2016

Carlos Drummond de Andrade & Adélia Prado



Cidadezinha qualquer
[Carlos Drummond de Andrade]

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.


[Alguma poesia. In: Nova Reunião. Volume 1. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009, pág. 31]

  

Bucólica nostalgia
[Adélia Prado]
  
Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem 
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!


[Bagagem. In: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015, pág. 37] 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Adélia Prado & Belchior


O que a musa eterna canta
[Adélia Prado]

Cesse de uma vez meu vão desejo 
de que o poema sirva a todas as fomes. 
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar: 
"Tenho birra de que me chamem de intelectual, 
sou um homem como todos os outros". 
Ah, que sabedoria, como todos os outros, 
a quem bastou descobrir: 
letras eu quero é pra pedir emprego, 
agradecer favores, 
escrever meu nome completo. 
O mais são as maltraçadas linhas.


[Bagagem. In: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015, pág. 36]

  
Alucinação
[Belchior]
  
Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais



[LP Alucinação. Belchior. polygram. 1976] 

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Adélia Prado & Arnaldo Antunes



O sempre amor
[Adélia Prado]

Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
sou de pedra-sabão.
Alegre ou triste,
amor é coisa que mais quero. 


[Bagagem. In: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015, pág. 64]

  
Todo mundo quer amor
[Arnaldo Antunes]
  
Todo mundo quer amor.
Todo mundo quer amor de verdade.
Uma pessoa boa quer amor.
Uma pessoa má quer amor,
Quer amor de verdade.
Quem tem medo quer amor,
Quem tem fome quer amor,
Quem tem frio quer amor,
Quem tem pinto saco boca bunda cu boceta quer amor
Ele quer
Ela quer
Ele quer
Ela quer
Todo mundo quer amor de verdade.


[LP Jesus não tem dentes no país dos banguelas. Titãs. WEA. 1987] 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Marujo, Paulo Veras

Marujo
Paulo Veras


Dentro da minha casa
acolho uma velhice
que me acompanha desde que nasci

O copo de prata de vovó
com seus lábios bordados na borda
Os olhos de uma tia morta
a vigiar-me da moldura oval
A bengala de meu avô
incentivando-me o passeio na calçada
A fruteira de vidro verde
(com frutas de cera)
a decepar-me o apetite
O aparelho de jantar azul
a fornecer-me a penumbra e a sopa
das seis da tarde

Na beira do rio
tem quermesse e eu não posso ir
tem bingo e leilão de peru assado
tem barquinho e rolete de cana


Estou vestido de marinheiro
e só posso navegar no jardim


___________

Paulo Veras (Parnaíba, PI, 1953 - Fortaleza, CE, 1983), contista e poeta, publicou O Cabeça de Cuia (1979), Os corações devem ser jogados na lata do lixo (1983) e Maus antecedentes (1981, livro de poemas em parceira com Leila Miccolis).

domingo, 28 de setembro de 2014

o oriente da beleza

[Adonis]

Quando penso em ir ver
o oriente da beleza
e o poente me chama
as trilhas se apagam através dos meus passos.


[ADONIS. Poemas. Trad. e org. Michel Sleiman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 45]

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Manuel Bandeira & João Cabral de Melo Neto

O último poema
[Manuel Bandeira]

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples 
                                                [e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes 
                                                                        [mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

[50 poemas escolhidos pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pág. 35]

  
O último poema
[João Cabral de Melo Neto]
  
Não sei quem me manda a poesia
nem se Quem disso a chamaria.

Mas quem quer que seja, quem for
esse Quem (eu mesmo, meu suor?),

seja mulher, paisagem ou o não
de que há preencher os vãos,

fazer, por exemplo, a muleta
que faz andar minha alma esquerda,

ao Quem que se dá à inglória pena
peço: que meu último poema

mande-o ainda em poema perverso,
de antilira, feito em antiverso.


[Agrestes, in: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, págs 252-253] 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O artista inconfessável

[João Cabral de Melo Neto]


Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.



MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo, in: A educação pela pedra e depois
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.58

terça-feira, 10 de junho de 2014

Nuvem no alto da montanha

Bai Juyi
[772-846]

Manhã, flutua ao pico intacta a branca nuvem;
no campo, o verde trigo cedo estará seco.
A vida vive, à morte segue, e o que consegue?
Só pode ao vento leste ir e dar-se à chuva.



tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao
Antologia da poesia clássica chinesa, Dinastia Tang, São Paulo: Unesp, 2013. 
P. 171

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A Du Fu, da aldeia de Shaqiu

[Li Bai]
701-762


Enfim, por que 
     estou aqui? 
Vivo retirado 
     na aldeia de Shaqiu. 
Ao pé das muralhas, 
     apenas árvores seculares. 
Nelas, dia e noite, 
     a voz do outono. 
O vinho de Lu 
     não chega 
a me deixar bêbado 
     e os cantos comoventes de Qi* 
não tocam mais 
     meu coração. 
Minhas saudades 
     são como as correntes 
do rio Wen, 
     apressadas, sem descanso, 
rumo ao sul. 

* Lu e Qi eram reinos na China, na fase 
que precedeu sua unificação, em 221 a.C.



沙丘城下寄杜甫

我来竟何事?高卧沙丘城。 
城边有古树,日夕连秋声。 
鲁酒不可醉,齐歌空复情。 
思君若汶水,浩荡寄南征。 


Tradução de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi
In: Li Bai, Du Fu e Wang Wei, Poemas clássicos chineses, Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. p. 37

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Antero de Quental & Olavo Bilac

A um poeta
Antero de Quental
                        (surge et ambula)

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!




A um poeta
Olavo Bilac
 
Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício.

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Manuel Bandeira & Carlos Drummond de Andrade

A estrada
[Manuel Bandeira]

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um
bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz
dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida passa!
E a mocidade vai acabar.
 


Petrópolis, 1921

[In: O Ritmo Dissoluto, 1924]




Cidadezinha qualquer 
[Carlos Drummond de Andrade]

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

 


[In: Alguma poesia, 1930]

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mario Quintana & Manuel Bandeira

 
Souvenir d’enfance
[Mario Quintana]
 
Minha primeira namorada me escutava com um ar 

                                                          [de cachorrinho Victor:
Todas aquelas minhas grandes mentirinhas 

                                                     [eram verdades para ela...
Para mim também! 



[QUINTANA, Mario. Nova antologia poética. 12. Ed. São Paulo: Globo, 2007, p. 171.]





Porquinho-da-Índia
[Manuel Bandeira]
 
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .


— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.



[Libertinagem]

domingo, 16 de dezembro de 2012

OMAR KHAYYAM & AUGUSTO DOS ANJOS

OMAR KHAYYAM, Rubaiyat

8
Satisfaze-te neste mundo
Com poucos amigos. Não busques
Tornar durável a amizade
Que possas sentir por alguém.

Antes de apertares na tua
A mão que te estendem, pergunta
A ti mesmo se ela algum dia
Não se erguerá para ferir-te.

[KHAYYAM, Omar. Rubaiyat, tradução de Manuel Bandeira. 3.ed, Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.18]

___________


AUGUSTO DOS ANJOS, Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

[MORICONI, Ítalo [org.]. Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 61]