quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Adélia Prado & Belchior


O que a musa eterna canta
[Adélia Prado]

Cesse de uma vez meu vão desejo 
de que o poema sirva a todas as fomes. 
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar: 
"Tenho birra de que me chamem de intelectual, 
sou um homem como todos os outros". 
Ah, que sabedoria, como todos os outros, 
a quem bastou descobrir: 
letras eu quero é pra pedir emprego, 
agradecer favores, 
escrever meu nome completo. 
O mais são as maltraçadas linhas.


[Bagagem. In: Poesia reunida. Rio de Janeiro: Record, 2015, pág. 36]

  
Alucinação
[Belchior]
  
Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais



[LP Alucinação. Belchior. polygram. 1976] 

Nenhum comentário: